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Foto do escritorLua Pche

O eu, o outro e o mundo.

Atualizado: 15 de jul. de 2021

"É vendida uma conveniente ilusão de saúde individualista,

onde as pessoas que estão em sofrimentos psíquicos muito genuínos são levadas,

pela mão de uma ou de outra ideologia, a um lugar propositalmente esvaziado de possibilidades de articulação e vínculo"


Saúde é um conceito complexo, porque pra começar é preciso ser flexível no que entendemos por essa palavra. Esse entendimento é atravessado por nuances culturais, pessoais e exige um olhar extremamente subjetivo. Na psicologia costumamos dizer que a questão é “bio-psico-social”, a gente fica careca de ouvir isso.


Quando falamos de saúde mental, mais especificamente, nos ensinam primeiro que se trata de um contexto pessoal, mas pessoal até que ponto, se esse ser individual se encontra dentro de um contexto coletivo? Uma coisa é fato: trazemos nossa própria bagagem, nossa simbologia particular, mas a influência do entorno é sempre algo digno de atenção. Não existe ser desassociado de cultura. Não existe “ter menos cultura”. Eu tenho, você tem, a América do Sul tem, e assim por diante.


Pensar sobre esse aspecto coletivo me remete à política. Onde há ser humano, há cultura e há política (em seu sentido original de pólis), a organização de uma comunidade, cidade, uma nação, um conjunto de pessoas vivendo coletivamente É uma arte. Penso que é impossível falar de saúde mental sem pensá-la por um viés também político.


Diferentes organizações sociais, com diferentes culturas, todas sentindo, de uma forma ou de outra, os impactos das decisões políticas tomadas nesse período totalmente fora da curva.

O momento é atípico, mas o poder de influência política sobre a vida, não! Acredito que estamos passando por um momento intensificado, pois nesse sentido, tudo continua seguindo na mesma direção: no esforço para fazer com que as pessoas, individualmente, acreditem cada vez mais que a saúde e os distúrbios mentais são processos isolados e despolitizados. A questão é até onde nos permitimos ver isso, e até onde optamos por não fazê-lo e porquê.


Os impactos da pandemia são sentidos individualmente: uns viajam e tiram férias, outros se preocupam com o sustento de hoje, alguns fazem lockdown. Cada um sente, significa e age a essa vivência à sua maneira. Em paralelo temos estudos que apontam para índices crescentes de ansiedade e depressão em quase todos os lugares do globo terrestre, que são nitidamente produto da situação geral que estamos passando.


Este é um fator que deve ser ignorado? Como fica a questão dos ritos de passagem? Aniversários, datas comemorativas e até a vivência do luto? Que saúde mental é essa que exige a precarização total do trabalho de outros seres humanos em nome da satisfação pessoal de alguns? Pensar individualmente tem realmente nos ajudado?


É vendida uma conveniente ilusão de saúde individualista, onde as pessoas que estão em sofrimentos psíquicos muito genuínos são levadas, pela mão de uma ou de outra ideologia, a um lugar propositalmente esvaziado de possibilidades de articulação e vínculo com nosso ambiente externo, cultural, sistêmico. Essa é uma jogada que tem como finalidade mitigar nossa criação de vínculo com o outro; é a falta de contato com o que é diferente. E ainda: é a falta de integração de conhecimentos e de tradução entre culturas, como diria Boaventura. Basicamente: é um projeto sócio-político pautado na hipervalorização da esfera privada.


Me parece aqui que o projeto “individualizante” em vigor sempre pregou, de alguma forma, a busca pela felicidade e plenitude de uma forma muito “própria”, como sinônimo de particular, única, privada e sendo propositalmente confundida com esse “charme de cada um”.


Mensagens superficiais e generalizadas que tentam dar conta desse grande abismo empático, como “respirar fundo”, “focar em coisas positivas”... não conseguem suprir a falta que faz uma visão crítica sobre sua existência enquanto parte de algo maior. É duro encarar o colapso de um sistema financeiro global, sentir seus impactos, não cair em pensamentos de “fim dos tempos” e ainda assim, lembrar das coisas positivas que realmente existem. Me parece que nesse contexto, todos estamos vivenciando uma sensação semelhante, em algum sentido (hora mais, hora menos).


O processo de Individuação (que nada tem de individualista), segundo Jung, exige primeiro um reconhecimento de si, depois uma tomada de consciência em relação com o outro e, por fim, de si em relação com o mundo. Na Emancipação, para Paulo Freire, nós temos o mesmo processo, para ambos essa jornada exige um compromisso para com o mundo, ele exige uma ação.


Se você não consegue ver possibilidade de mudança dentro de você, dificilmente você enxerga isso no mundo. O corpo humano não é só propriedade particular, ele é muito mais que isso. É morada da criatividade, de soluções extraordinárias e é, com certeza, mais forte dentro de um movimento coletivo.


Arte: Francesco Ripoli.


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